Língua é anterior à gramática. Língua é causa e gramática consequência, e não o contrário. Portanto, podemos deduzir regras gramaticais a partir do fenômeno existente, mas dificilmente fazer o contrário. Podemos partir do particular para o geral, da experiência para a teoria; mas dificilmente dá certo partir da teoria para a prática.
Portanto, o estudo da gramática de uma língua só faz sentido se o estudante já tiver desenvolvido uma certa habilidade comunicativa nessa língua.
PRESCRITIVA x DESCRITIVA
Gramática tradicional, normativa, ou prescritiva são termos sinônimos. Como o próprio nome define, a gramática prescritiva é uma tentativa de estabelecer um ordenamento lógico em um determinado idioma e definir normas que vão determinar o que é apropriado no uso desse idioma. Daí surge a noção de certo e errado. Aquilo que não estiver de acordo com as normas, com as regras gramaticais, é classificado como errado. Esta teoria predominou desde meados do século 18 até o início deste século, e é ainda encontrada no currículo de muitas escolas hoje.
A partir das décadas de 1920 e 1930, a teoria do estruturalismo em linguística (Ferdinand de Saussure na Europa e Leonard Bloomfield nos EUA) passou a questionar a visão prescritiva. No estruturalismo, o fenômeno existente é o ponto de partida. Observar o fenômeno da linguagem de fato e descrevê-lo passou a ser mais importante do que prescrever como esse fenômeno deveria ser.
Nos anos 60, a partir do trabalho do norte-americano
Noam Chomsky, a teoria linguística
gerativo-transformacional revolucionou conceitos e trouxe um elemento novo: o de que a linguagem humana é criativa, e de que a capacidade (
competence) de um
native speaker com bom grau de instrução, através da qual ele consegue produzir um número ilimitado de frases, é que determina a "gramaticalidade" ou a "aceitabilidade" da língua.
Por um lado a nova gramática gerativo-transformacional representou um movimento em oposição ao então predominante estruturalismo, mas por outro lado ambos se opõem radicalmente à rigidez da linguística prescritiva. Isto coloca o estudo da gramática, quanto a seu aspecto funcional, no papel de descritiva e não normativa. Levando nosso raciocínio ao extremo, poderíamos dizer que, se gramática fosse prescritiva e conseguisse frear a evolução natural das línguas, devêssemos talvez voltar a usar o latim vulgar em vez do português. Ou talvez o latim nem tivesse de desviado de sua versão clássica.
O fato é que regras gramaticais são úteis se dinâmicas, se relativas e não absolutas. Devem acompanhar com agilidade as transformações que inexoravelmente ocorrem em todos os idiomas, ao sabor de fenômenos sociais, culturais, econômicos, etc.
RELATIVIDADE NA DESCRIÇÃO GRAMATICAL
Uma vez aceito o fato de que o fenômeno linguístico é anterior e superior à sua descrição gramatical, e que a natureza e a função desta é descrever e interpretar os aspectos do mesmo que apresentam lógica, podemos concluir que esta descrição e interpretação é relativa e não absoluta, podendo (e devendo!) variar de acordo com a função a que se destina.
Quando um linguista descreve e interpreta um idioma com a finalidade de proporcionar uma visão do mesmo aos estudantes que já falam esse idioma como língua materna, está criando uma gramática geral. Este mesmo idioma, entretanto, pode ser descrito, comparado e interpretado sob a ótica de quem fala e conhece outro idioma. Neste caso teríamos uma gramática comparada. Quando um linguista por exemplo, descreve e interpreta o inglês para ensiná-lo como língua estrangeira a brasileiros, essa descrição gramatical deve levar em especial consideração aqueles aspectos que contrastam mais em relação ao português, e portanto representam uma dificuldade maior para os alunos. Exemplo dos aspectos gramaticais que nesse caso exigiriam atenção especial:
ENSINANDO INGLÊS PARA FALANTES DE PORTUGUÊS
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PORTUGUÊS
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INGLÊS
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Modos negativo e principalmente interrogativo em português não implicam em alterações estruturais. A mente do falante nativo de português não possui qualquer habilidade desenvolvida para lidar com as implicações estruturais dos modos interrogativo e negativo do inglês.
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Relevância gramatical dos modos interrogativo e negativo
Implicação estrutural dos modos negativo e principalmente interrogativo, com a inversão de posição entre sujeito e verbo e, outras vezes, uso de verbo auxiliar.
Veja Formulação de idéias interrogativas e negativas
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Posicionamento do adjetivo em relação ao substativo
Em português, o adjetivo normalmente é posicionado após o substantivo a que se refere, podendo entretando ser posicionado à frente em muitos casos.
Ex: casa bonita, alto índice
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Adjective-noun order
A não ser por raríssimas exceções, em inglês o adjetivo sempre vem à frente do substantivo a que se refere.
Ex: beautiful house, high rate
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Em português, dificilmente a mesma palavra desempenha a função de substantivo e adjetivo ao mesmo tempo. Para qualificarmos um substantivo com outro, é necessário o uso de uma preposição.
Ex: férias de verão, casa de tijolos
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Adjetivação dos substantivos
Em inglês, substantivos podem ser usados como se fossem adjetivos.
Ex: summer vacation, brick house
Frequentemente dois substantivos na função de adjetivos são acrescentados à frente do substantivo principal.
Ex: Hygiene cost reduction programs
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Em português, não existem quantificadores específicos para substantivos contáveis e incontáveis. |
Relevância gramatical de substantivos contáveis e incontáveis
Veja Countable & Uncountable Nouns - Uso Correto de seus Quantifiers
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A ambiguidade léxica do verbo ter
Em português, o verbo ter tem dois significados predominantes: propriedade e existência. A necessidade de diferenciar entre estas duas idéias representadas pela mesma palavra se traduz numa dificuldade notória.
Toda ambiguidade léxica da língua materna sem equivalente na L2 representa dificuldade. A ambiguidade do verbo ter, entretanto, devido à frequência com que o mesmo ocorre, assume uma importância maior.
Sobre a ambiguidade léxica do português, veja Palavras de Múltiplo Significado.
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Em inglês, a idéia de propriedade é traduzida pelo verbo have.
Ex: I have a car.
A idéia de existência, entretanto, é construída com o verbo there is.
Ex: There is a book on the table.
Veja There TO BE = ter (existência)
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Sujeito oculto, indeterminado ou inexistente
É comum em português a frase apresentar-se sem sujeito, seja ele oculto, indeterminado ou inexistente.
Ex: Foste ao cinema? Bebeu-se muito na festa. Dizem que ele é capaz de ganhar nas eleições. Vai chover.
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Em inglês, a não ser pelo modo imperativo, não há frase sem sujeito.
Ex: Did you go to the movies? Everybody drank a lot at the party. They say he may win the elections.It's going to rain.
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- Posicionamento livre do verbo em relação ao sujeito
- Em português o sujeito pode ser posicionado tanto antes como depois do verbo.
- Ex: Sua casa é bonita. É bonita sua casa.
- Um vendedor apareceu no escritório. Apareceu um vendedor no escritório.
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- Em inglês, quando houver verbo auxiliar, o posicionamento do verbo em relação ao sujeito tem a finalidade de identificar o modo interrogativo. Portanto, em inglês o sujeito deve sempre ser colocado antes do verbo em frases afirmativas e negativas.
- Ex: He is a student. Is she a student?
- I have never been to England. Have you ever been to England?
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- Uso abundante de voz passiva
- O uso frequente da voz passiva é uma característica do português.
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- Uso restrito de voz passiva
- A ocorrência da voz passiva em inglês se limita a determinadas situações. Seu uso indiscrimado e frequente como em português compromete a qualidade do texto.
- Veja Cuidado com o uso da voz passiva
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Veja aqui um estudo mais abrangente sobre contrastes gramaticais: ERROR ANALYSIS
Da mesma forma, um bom programa de português para estrangeiros deve ser direcionado aos contrastes entre a língua materna do aluno e o português. Exemplo de aspectos gramaticais que representam dificuldades persistentes e exigem atenção especial de falantes nativos de inglês estudando português:
ENSINANDO PORTUGUÊS PARA FALANTES DE INGLÊS
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INGLÊS
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PORTUGUÊS
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- Quase-inexistência de conjugação verbal
- Com exceção do verbo to be, que tem 8 formas diferentes (am, is, are, was, were, be, being, been), os demais verbos têm apenas 4 formas quando regulares (work, works, worked, working) e 5 quando irregulares (speak, speaks, spoke, speaking, spoken).
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- Conjugação verbal
- O português possui mais de 40 sufixos diferentes para flexionar um único verbo em todas as pessoas e tempos comuns. Isto representa um pesadelo para o estrangeiro cuja língua materna não seja uma das línguas latinas.
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- Rara ocorrência de gênero em inglês
- As únicas ocorrências de gênero masculino e feminino que se observam no inglês são nos pronomes da terceira pessoa do singular (he, she, his, her, him) e alguns raros substantivos comoprince - princess, lion - lioness.
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- Gênero de substantivos, adjetivos e artigos
- O português, assim como as demais línguas latinas, apresenta sempre uma forma masculina e uma feminina para substantivos, adjetivos e artigos. Todo substantivo tem que pertencer a uma dos dois gêneros, e seus respectivos adjetivos e artigos devem concordar. Isto representa uma séria dificuldade para o falante nativo de inglês.
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- Invariabilidade de adjetivos e artigos em inglês
- Com exceção do artigo indefinido, que comporta um variação fonética (a, an), adjetivos e artigos são invariáveis em inglês.
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- Pluralização de adjetivos e artigos
- Em português, todos os adjetivos e artigos, tanto no masculino como no feminino, são pluralizados.
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- Ambiguidade léxica de palavras de alta ocorrência
- Toda ambiguidade léxica da língua materna sem equivalente na L2 representa dificuldade. No caso de palavras com alta ocorrência como os verbos to be e can, as formas equivalentes em português precisam ser claramente explicadas e frequentemente lembradas.
- Ex: I'm a doctor. / I'm visiting Brazil.
- Can I smoke here? / I can speak English. / Can you drive at night?
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- Em português a idéia de condição permanente é normalmente representada pelo verbo ser, enquanto que a idéia de condição temporária é representada pelo verbo estar.
- Ex: Eu sou médico. / Estou visitando o Brasil.
- O verbo can do inglês comporta as idéias de permissão e habilidade, para as quais o português usa diferentes formas.
- Ex: Posso fumar aqui? / Eu sei falar inglês. / Você consegue dirigir à noite?
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OS DESVIOS GRAMATICAIS
Dentro da visão da gramática gerativo-transformacional, os tradicionais conceitos de "certo" e "errado", tão adequados às ciências exatas, cedem lugar ao que Chomsky denomina de grammatical eungrammatical, e que poderíamos interpretar como "usual" e "não-usual", ou talvez "autêntico" e "não-autêntico".
Usuais ou autênticas são as formas passíveis de serem usadas por falantes nativos, que na conceituação tradicional são denominadas de "corretas."
Não-usuais ou não-autênticos seriam os desvios produzidos por não-nativos, que na conceituação tradicional são denominados de "erros." Estes, por sua vez, dividem-se em "aceitáveis" ou "eficazes" e "inaceitáveis" ou "ineficazes." O desvio "aceitável" ou "eficaz" é aquele que, embora seja percebido por falantes nativos como não-autêntico, ainda assim cumpre com a finalidade de comunicar. Por exemplo, se um estrangeiro que está aprendendo português como segunda língua disser:
"Eu vai Porto Alegre amanhã.*";
"Eu gostar de beber cerveja brasileiro.*" ou
"Eu dei o chave para ele.*"
estará produzindo desvios aceitáveis ou eficazes, uma vez que os mesmos não comprometem o entendimento. Entretanto, se este mesmo estrangeiro disser:
"Eu fui Porto Alegre amanhã."
estará produzindo um desvio inaceitável ou ineficaz, uma vez que compromete seriamente o entendimento da mensagem.
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